A história da humanidade pode ser vista como a história da consciência da ilusão e do reconhecimento dos erros da convicção. Em dado momento, perante a certeza convicta um acontecimento põe tudo a perder, uma emergência abrupta do real vem destruir o véu protetor. A consciência dos limites da consciência faz emergir um ser consciente da forma pela qual é consciente e, então, da possibilidade de mudar essa forma. Talvez, esso seja o que nos caracteriza como humanos: ser vivo consciente capaz de alterar a forma da própria consciência.O relativismo pode ser visto como a posição a partir da qual a verdade (correção, validade) de uma proposição é relativa a alguma coisa que varia a cada situação; outra versão do relativismo é a tese de que o ter por verdadeiro (por um sujeito ou comunidade) fundamenta a verdade das proposições. O fundamentalismo, ao contrário, seria a posição a partir da qual a verdade de uma proposição é relativa a algo que não varia a cada situação. O fundamentalismo as mais das vezes é confundido com o dogmatismo; porém, dogmáticos são apenas aqueles fundamentalismos que aceitam como verdadeira alguma proposição, ou discurso, a partir da qual e na qual todas as verdades são fundamentadas. A tese fundamentalista é mais forte do que a tese dogmática, pois implica que a verdade de qualquer discurso funda-se em algo independente e não-relativo ao discurso. Dito de outro modo, para o relativista a verdade de uma proposição funda-se em algo variável; para o fundamentalista, a verdade funda-se em algo fixo. Alguns preferem usar a noção de tempo para fazer essa distinção: para o relativista o fundamento da verdade é temporal, para o fundamentalista esse fundamento é eterno. Normalmente, o fundamentalista acredita também que ele tem acesso ao fundamento da verdade e que quem dele discorda está no erro. Por sua vez, o relativista em geral também acredita que ele está na verdade e que toda discordância não implica em erro de nenhuma das partes. Nesse sentido, ambos acreditam na verdade. Além disso, o relativista e o fundamentalista concordam num outro ponto, qual seja, ambos absolutizam a própria posição, pois, para ambos, os argumentos, práticas e opiniões dos outros que pensam diferente não são razões suficientes para se questionar a verdade de suas próprias posições. Nada do que o outro diz abala a sua própria posição, para um porque toda diferença é sinal de erro, para o outro porque toda diferença é conciliável.Agora, considere-se a seguinte situação. Na aldeia A tem-se por verdadeiro que (1) o aborto não é crime, que (2) fumar tabaco não acarreta mal-formação fetal, e (3) que a água é uma substância simples; na aldeia B vizinha, ao contrário, tem-se por falsas as proposições (1), (2) e (3). Durante séculos uma aldeia tentou impor-se culturalmente sobre a outra, com base na suposição comum a ambas de que a verdade deveria ser única e exclusiva, que a verdade tinha um fundamento independente das opiniões dessa ou daquela aldeia, pois cada uma acreditava ter o acesso a esse fundamento. Muitos morreram na luta pela verdade. Até que um dia um sábio andarilho e errante resolveu a disputa mostrando que a diferença de opinião das duas culturas não precisava ser resolvida. Ele disse, “o homem é a medida do que é e do que não é. A verdade é relativa ao homem e toda aldeia é uma manifestação do humano, logo ambas as aldeias estavam com a verdade, apenas tinham culturas diferentes. Pensem comigo, disse ele, considerem as coisas do meu ponto de vista; para mim é verdade que (1) (2) e (3) são verdadeiras na aldeia A e que é verdade que na aldeia B tais não são verdadeiras”. Os habitantes de ambas as aldeias tiveram de concordar com o sábio, ele estava dizendo a verdade. A partir desse dia ninguém mais morreu pela verdade; cada aldeia dizia e ensinava que a verdade era relativa a cada aldeia, e que não era necessário brigar pela verdade. Todos estavam contentes e passaram a fazer festas comuns. Então, um dia uma moça engravidou com um moço da outra aldeia. Mas, ao perceber a gravidez disse para o moço que iria fazer aborto. O moço, indignado, disse que isso era um crime hediondo e inaceitável, e que caso ela o fizesse ele seria punido em sua aldeia, pois ele era co-responsável pela gravidez. Então, ela virou-se para ele e disse: “eu vou abortar porque nós dois fumamos tabaco desde há muito tempo e isso, segundo o que se acredita na sua aldeia, fará mal para a criança.” O moço teve de concordar com ela. Mas, ele não podia aceitar o aborto. Então, ele disse: “mas você não acredita que o tabaco faça mal, logo, o seu argumento não vale...”.Essa urgência, esse aparecimento do real bruto, a gravidez não planejada, fez balançar a confiança no pacto relativista que havia apaziguado as duas aldeias. A solução relativista não era capaz de resolver a questão. Se aceitassem o aborto, um dos lados teria de qualificar o ato e os seus responsáveis como criminosos. Então, um menino cego disse veladamente ao povo das duas aldeias: eu “quero falar de sua mania de negar o que é, e de explicar o que não é”. “Vocês compreenderam mal o sábio estrangeiro. Ele disse a sua verdade, não que a verdade era relativa. Ao contrário, o que ele disse era que havia apenas uma verdade, essa: que nossa aldeia tinha por verdadeiro exatamente o que a outra tinha por falso e vice-versa. Essa é a verdade. Mas, vós, por não quererem admitir a realidade do conflito, iludidos que estavam por sua própria vaidade da posse da verdade, viram apenas a parte que lhes interessava, aquela que confirmava as suas velhas verdades. Essa gravidez veio mostrar o auto-engano em que vivemos desde então.” Todos se calaram e a noite caiu sobre as cabeças confusas.Abaladas na sua certeza e convicção, dessa vez as aldeias não lutaram, porém. As duas aldeias reunidas iniciaram uma discussão em comum acerca das próprias crenças, pois agora elas já não tinham mais a força da verdade e o problema atingia as duas partes. Primeiro, chegaram a conclusão que ser o aborto um crime era uma questão de costume antigo na aldeia B, pois no que acreditavam firmemente era que tirar a vida de alguém era crime, e alguém um dia estendeu essa tese para a vida intra-uterina. Depois, concordaram que ser o tabaco causa de mal-formação era uma opinião baseada na observação de casos reais no passado na aldeia B, e que a aldeia A não acreditava nisso porque nunca houve casos semelhantes lá. Quanto ao terceiro caso, em ambas as aldeias não havia nenhum argumento, mas tão somente uma crença que foi aceita como princípio, já que nenhuma experiência ou fato passado indicava que a água era ou não era simples. Depois de muito pensar, chegaram a conclusão de que não sabiam a verdade. Se desesperaram. Pensaram de novo e muito mais. Fumaram longos cachimbos durante três noites e três dias. Não resolveu. Suspenderam a crença na verdade de suas crenças, e decidiram investigar mais e melhor tais assuntos. Assim nasceu a ciência entre eles. Decidiram chamar o menino cego de filósofo, pois ele não tinha a verdade, mas a desejava.Muito tempo depois, quando a nova criança já corria atrás das borboletas e dos pirilampos, as duas aldeias voltaram a se reunir para tomar uma decisão. Guiados pela palavra do menino cego, haviam percebido que um fato ser crime ou não era diferente de um fato causar outro fato e, mais ainda, que ambos esses casos eram diferentes de uma coisa ser assim ou não-assim. A primeira ilusão havia se dissipado por meio de uma reflexão conceitual. Mas isso ainda não era suficiente. Decidiram, em comum acordo, que (a) o aborto somente não seria crime quando se comprovasse que o feto seria incapacitado para viver autonomamente, e (b) em qualquer caso, quando ambos os pais concordassem até antes do final da oitava semana de gravidez. Ficaram todos felizes, pois, a partir desses dois pontos comuns puderam manter a opinião de ambas as aldeias sobre o assunto. O aborto era e não era crime, mas não sob o mesmo aspecto. Quanto ao problema da relação entre fumar tabaco e mal-formação fetal, descobriram que (c) isso acontecia apenas quando as futuras mães fumavam durante a gestação e (d) que esse efeito era anulado se o tabaco era da espécie alfa, produzido somente na aldeia A. Novamente ficaram felizes, pois não precisaram abandonar suas antigas crenças, mas tão somente aperfeiçoá-las. O terceiro caso ainda está por resolver. Nenhuma experiência ou observação pode verificar a simplicidade ou a complexidade da água. Na aldeia A, todavia, desenvolveu-se uma teoria atômica da matéria, e por ela pode-se inferir que a água é complexa, e pelo menos conteria dois elementos distintos. Entretanto, na aldeia B desenvolveu-se uma teoria energética da matéria, pela qual todas as substâncias, inclusive os átomos previstos na teoria da aldeia A, são quantidades de energia, da qual infere-se que a água é simples em última análise. Porém, eles estão agora sem verbas para construir um equipamento que testaria essas duas inferências. Resolveram fundar uma universidade financiada por aqueles que têm mais posses e vivem melhor nas duas aldeias, pois descobriram que muitas outras suas crenças também eram obscuras e conflitantes. Ainda era noite, e havia muito por investigar.(E nós, como revisaríamos as conclusões das aldeias? Como resolvemos nossos conflitos de opinião? Não somos relativistas quando nos querem convencer de algo que nos desagrada, e não somos fundamentalistas quando atacam nossas certezas? Não confiamos cegamente na forma atual da nossa consciência? Não agimos como insetos?)As duas aldeias passaram de uma posição fundamentalista, na qual cada uma tinha a verdade absolutamente e os diferentes estavam errados absolutamente, para uma posição relativista, na qual a verdade das próprias crenças não implicava o erro dos que pensassem diferente, mas em que também a aceitação da verdade dos outros diferentes não implicava a revisão das próprias. Diante da emergência real da gravidez, eles adotaram uma posição crítica em relação às próprias crenças, questionando-se sobre a validade do ter por verdadeiro de ambas as aldeias. Essa posição é a mais frágil de todas e a mais difícil de se ocupar, pois ela exige que toda diferença de opinião seja considerada como indício de ilusão ou engano, não do outro diferente, mas das próprias crenças, e que nenhuma verdade estabelecida seja imune ao questionamento. Diante de um conflito de verdades, a posição crítica suspende o ter por verdadeiro de todas as partes envolvidas. E toda solução, ou veredicto, tem de se fundar em critérios aceitáveis em comum por todas as partes em litígio. E, mesmo assim, uma vez estabelecida uma verdade com base em critérios comuns, se alguém discordar, tem de ser feita uma revisão dos critérios comuns. Difícil permanecer nessa posição. Pensar, julgar, decidir e viver a partir dela tornam-se atividades de risco, pois as certezas e verdades solidificadas pela tradição podem desmoronar de uma só vez.

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